domingo, 15 de março de 2015

Tias-avós

A senhorinha acordou do cochilo da tarde e desligou o ar condicionado. Ainda não tinha aprendido a mexer naquele troço direito. Sempre ficava ou muito frio ou não resfriava nada. Tinha que se lembrar de pedir pra neta ir lá ensiná-la. Decidiu abrir a janela pra ver se entrava um ar quente da rua. Ligou a televisão, sentou na poltrona e assistiu, sem dar atenção, a uma cena do filme dublado que passava. Ligava sempre a televisão porque gostava daquele zunido de pessoas falando. Colocou as pantufas, foi até a janela da sala e olhou lá pra baixo, morava no décimo andar de um prédio de onde só se via o topo da cabeça das pessoas. A rua não era muito movimentada e isso contribuía para a falta de emoção daquelas tardes. Adorava olhar lá pra baixo quando chovia, porque os guarda-chuvas abertos, cada um de uma cor, faziam um lindo desenho em movimento. Mas nesse dia fazia sol. Ficou ali debruçada no parapeito da janela algum tempo, pensando se conseguiria reconhecer algum pedestre, mas não conseguia. Então tentou imaginar quem eram aquelas pessoas e o que faziam naquela rua à pé, pra onde iam e quem iriam encontrar...
Quando caiu em si, pensou que tinha virado uma futriqueira depois de velha. “Que besteira ficar querendo saber da vida dos outros!”, cochichou pra si mesma. Foi até a cozinha fazer um café e comer um lanchinho. O cheiro do pão torrado fez lembrar quando era nova e ia visitar a madrinha na sexta-feira santa pra pedir a benção. Era costume ir todos os onze irmãos juntos na casa de todas as madrinhas. Era o dia inteiro de casa em casa, pra lá e pra cá, uma bagunça! A madrinha dela tinha mania de guardar os pães que fazia num baú cheio de roupas e naftalina pra conservar. Na sexta-feira santa servia aquele pão com cheiro e gosto de naftalina pra criançada toda que aparecia. Era preciso prender a respiração pra comer de tanto que o pão fedia. Não podia fazer cara feia, desacato pra madrinha é pecado. Ainda mais na sexta-feira santa. Davam graças a Deus quando iam pra casa da madrinha do irmão mais novinho. Era a única que torrava o pão pra todo mundo.
Sentou na cabeceira da mesa e comeu o seu café da tarde. Lembrou-se das visitas que fazia na casa das irmãs de sua avó. “Será que ainda existe esse negócio de tia avó hoje em dia?”, se perguntou em pensamento. Quando morava em Maricá, era tudo casa, todos moravam pertinho, era roça. A sala da casa dava numa varandinha que já dava na rua de terra batida. O vizinho da frente, seu Antônio, estava sempre ali, proseando na cadeira de balanço com dona Carmelita. Conhecia cada rosto daquela rua. Às vezes levava bronca da mãe quando saía pra comprar a manteiga da vendinha do fim da rua e tardava a voltar porque entrou na casa de alguém pra ficar de papo. Não era culpa dela, as pessoas ficavam fora de casa e chamavam quando ela passava, não podia fazer desfeita. Mas é que a mãe esperava a manteiga pra servir com pão pra visita que estava lá na casa.
Terminou de tomar o café, lavou a louça e voltou a ver aquele filme sem graça da televisão. Pensou em quanto seu apartamento estava longe do chão, da terra batida, dos vizinhos e das pessoas queridas. Desejou que a campainha soasse, que o telefone tocasse, que alguém batesse na porta. Fechou os olhos bem apertados e quis chorar. Saudou o tempo que não existe mais e ficou triste pelas netas, que não tiveram aquilo, que estavam, provavelmente, trancadas sozinhas em seus quartos de apartamento. Pelo menos com o ar condicionado numa temperatura agradável.

Um comentário:

  1. Parece que todo prédio carrega junto um ar de nostalgia... parece que tem algo de parodoxal nos corredores, nos elevadores, nos porteiros, algo de ridículo...
    O mais estranho somos nós, nascidos e criados em prédios, sentirmos essa nostalgia.
    Será que as crianças de hoje sentem isso também?

    ResponderExcluir

Três vezes arte

Alguém estava triste na rua, Recuperando-se do dia inteiro sofrido Tentaram distraí-lo de seu sofrimento Enganando-o com as gritaria...