terça-feira, 10 de março de 2015

Rituais

Existe todo um ritual para se terminar um ano e começar outro. Desde os rituais mais comerciais como a venda de flores pra jogar no mar ou de roupas brancas até as mais abstratas como as infindáveis listas de promessas e resoluções que nem sempre serão cumpridas. As pessoas ficam ouriçadas, no sentido mais puro da palavra, é como que virassem ouriços mesmo, de cabelos em pé, pelos arrepiados e olhos arregalados. É preciso providenciar tanta coisa, decidir que roupa usar, com quem passar a virada do ano, viajar ou não, o que comer, o que comprar... As lojas ficam todas lotadas, os supermercados e principalmente as estradas. Os preços vão às alturas e parece que todos os seres humanos saem de suas tocas, afinal, não existe lugar vazio nesta época. Quem conseguir abrir os dois braços e rodar até ficar tonto em uma praia no final de ano já pode se sentir privilegiado!
          Todo esse alvoroço de final de ano é um tanto cansativo e até mesmo entediante. Não podemos deixar de estar alegres, sorridentes e desejar um bom fim de ano pra todo mundo que encontrarmos, conhecidos ou não. E ai de quem tentar escapar do ritual! Quem está magoado, triste, sem ânimo pros festejos ou quem ainda não se contaminou com a euforia, tem mais é que dar um jeito e se encaixar o mais rápido possível, pra não ficar feio.
         No entanto, para além desses rituais manjados, que toda a boiada pratica anualmente, mesmo sem querer, existe um ritual intrínseco ao fim de ano, que acontece nos abençoados trópicos, que é a chuva de todo último dia do ano. Depois daquele dia de calor quase infernal, que ninguém agüenta mesmo estando pelado, no fim do dia, o céu escurece com as nuvens carregadíssimas e cai aquele toró, e logo depois o sol abre de novo. Essas chuvas de verão, em especial a do último dia do ano, são previsíveis, todos os brasileiros são familiarizados com elas, alguns, inclusive, já derramaram lágrimas junto com as gotas de chuva por terem parentes perdidos nas recorrentes inundações e deslizamentos de todo começo de ano. Tais chuvas também são responsáveis por dramas muito menores como arruinamento de festas ou cancelamento de viagens. É essa chuva do último dia do ano, porém, que sobressai a todos os rituais que envolvem a virada do ano. É ela, caindo bem mansinho no começo, que traz o aviso de que o ano está se acabando, traz o sinal, nos faz agradecer o ano que se encerra. E depois, quando aperta e chove forte é a natureza nos pedindo pra lavar a alma, pedir perdão, perceber as falhas cometidas, é uma bronca. E depois quando volta a chover mansinho, é a chuva acabando, as nuvens já descarregadas, a natureza aceitando nosso perdão fazendo carinho de novo com suas águas celestes, essa é a hora de se preparar pro novo ano. Logo em seguida o céu se abre, o sol retorna, muitas vezes nos presenteando com arco-íris, o ano novo está batendo a nossa porta, pedindo pra entrar, repleto de cores. O ritual da chuva que vem molhar nossas cabeças, memórias e lamentos é tão verdadeiro que coloca no chinelo as lentilhas, uvas, flores e roupas brancas.

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