terça-feira, 2 de maio de 2017

O encontro

O cipó atravessado impedia o caminho. Segurou mais forte o terçado na mão direita, mirou o meio da curva que o cipó fazia para baixo e golpeou com toda a habilidade que ganhou nos anos vividos de floresta. Tencionava dar apenas um único e certeiro golpe para limpar o caminho. Quando o barulho forte do encontro da lamina com a madeira cessou, ressoou ainda o som das folhas que caiam no chão. Ainda distraído, escuto um rosnado que rasgou suavemente o ar. Levantou os olhos e só então avistou, onde antes o cipó impedia a visão, o bicho. Quando as pupilas se encontraram, ela, pintada, agachou precisa e ligeiramente as quatro patas. As pernas dele tremeram. Segurou com toda a força o terçado na mão, a vontade foi de correr, mas segurou o corpo enquanto observava e temia. A onça mantinha os olhos atentos, imóveis, as orelhas coladas no crânio. Ele não podia prever seus movimentos, e o suor escorria dos poros como água em nascente. Pela sua cabeça passou o medo de que aquele suor poderia piorar, atrair o ataque e tentou conscientemente frear suas glândulas. Logo depois pensou em avançar primeiro, com o terçado pra cima, gritando. Teve muito medo. O encontro com o animal era seu sonho de criança, acreditava que conseguiria matar. Queria matar. Levar o coro pra casa, pendurar na parede, comer a carne, contar pros outros. Agora, ali, se arrependia de ter desejado tão fortemente e por tanto tempo, pois acreditava que poderia ter traçado seu destino. Ele próprio o autor de sua tragédia. Era um menino burro, lamentou em pensamento. Agora de cara o bicho, segurava o choro com medo de atentá-la. Ela, imóvel. Não acreditava o quão desatento tinha sido ao não repará-la. Odiou o cipó. Lembrou da Ada no barco com as crianças, e do queixada que tinha prometido pro jantar. Por quanto tempo esperariam por ele? O que veriam quando o encontrassem dias depois na mata? Sentiu pavor e vergonha, sem tirar os olhos do animal. Nela, mal se podia notar a respiração, mas mexeu as orelhas, inclinando-as mais junto ao crânio, como se fosse possível. Gelou, e num ato impensado apertou os olhos. Apavorou-se por ter feito isso mas não podia decidir se o melhor era tornar a abri-los. Escutou passos nas folhas. Num impulso, arregalou os olhos soltando o ar pela boca, e espalmou as mãos, como que pudessem protege-lo. Foi a tempo de ver apenas a metade do corpo amarelo e preto, que atravessou o caminho e seguiu pela direita. Ficou ainda parado por alguns segundos sem respirar, sem coragem de fazer barulho, de levantar o pé, de chorar ou sorrir. Envergonhou-se da sua atitude. Sabia que se ela quisesse, estaria morto. Sentiu-se grato e pequeno. Deu o primeiro passo de costas, o segundo e o terceiro. Virou-se devagar e então correu.

Destino final

- Senhoras e senhores, em instantes iniciaremos nosso serviço de bordo. Neste voo temos as opções biscoito salgado ou doce, bolo e balas de gelatina, acompanhadas de refrigerante ou suco de laranja nas versões normal ou diet. Aqueles que o desejarem queiram abrir a mesinha a sua frente, obrigado.
- O que você vai fazer quando chegar?
- Vou me manter longe de você!
- Eu estava perguntando se alguém vai te buscar, podemos dividir um taxi.
- Ana, eu não quero nem falar com você, quem dirá dividir um taxi.
- Marcos, você está exagerando, não precisa de tudo isso. Já passou, chega!
- Já passou? Foi há cinco dias atrás!
- Meu amor, porque você não me escuta? Eu já te disse que não foi nada, não mudou em nada o que eu sinto por você. Porque você acha que uma noite com outra pessoa mudaria alguma coisa?
- Ana, você enlouqueceu! Você me traiu e age como se não fosse nada, na minha cara.
- Em que isso pode ter mudado o nosso relacionamento, Marcos? Foi uma noite só, com um cara qualquer.
- Pois é. Eu nunca imaginei que você fosse tão vagabunda.
- O senhor deseja alguma coisa?
- Coca-cola. E, bolo também. E esses biscoitos. Pronto.
- A senhora deseja alguma coisa?
- Água. Sem gelo, por favor.
- Me respeita, Marcos. Você não tem o direito de me tratar assim. Nós conversamos sobre isso antes, e você age como se não soubesse de nada.
- Eu nunca aceitei essa história de relacionamento aberto. Não importa se conversamos antes ou não.
- Você disse que queria tentar! Não tenho culpa se mudou tão rápido de ideia.
- Eu cogitei tentar e na mesma noite você transou com outro cara, Ana! Isso sim é desrespeitar alguém.
- Marcos, eu tinha o seu consentimento! E não mudou nada. Você parece não acreditar no nosso relacionamento. Por que se afeta tanto com um cara que nem conhece? E que eu nunca mais tornarei a ver...
- Ana, nada do que você diz faz sentido!
- Eu te amo, Marcos. Não queria que fosse assim.
- Senhoras e senhores, dentro de instantes pousaremos no aeroporto Val-de-Cans em Belém.  São vinte e uma horas e quarenta e sete minutos. A temperatura é de 30 graus Celsius. Por favor, retornem o encosto da poltrona para a posição vertical, observando o aviso de “atar cintos” e verifique o travamento da mesa a sua frente. Obrigado.
- Se você me amasse, eu lhe seria suficiente. Agora eu só sinto rancor.
- Nunca ninguém é suficiente pra ninguém, Marcos. O mundo é gigante, tem bilhões de pessoas e é normal nos sentirmos atraídos por elas. Você não compreende que eu possa continuar te amando. Eu também não quero que você deixe de viver por mim. Dividimos a nossa vida porque escolhemos, e nos amamos. Mas não devemos ser prisioneiros um do outro.
- Ana, isso nunca mais vai acontecer. Você me traiu e acabou.
- Vamos dividir um taxi pra casa? Seria ridículo voltarmos separados.
- Tá. Pela última vez. Mas fico na casa do meu irmão.

- Senhoras e senhores sejam bem vindos a Belém. Por medida de segurança, permaneçam sentados até o aviso de “atar cintos” seja desligado. Tenham cuidado ao abrir o compartimento de bagagens para a retirada dos seus pertences de mão. Eles podem ter se deslocado durante pousos e decolagens. O desembarque será realizado pela porta traseira. Passageiros com destino a esta cidade e conexões deverão desembarcar. Nossa equipe em terra terá prazer em ajudá-los. Agradecemos a sua preferência por voar conosco. Desejamos uma ótima noite e até o nosso próximo voo.

Clitolitros

É por causa desse espetáculo
Do falo
Que vivemos,
nós e eles,
sem conhecer vaginas
Essa supervalorização de cabeças de pênis
Em detrimento de mentes inteligentes...
Fosse Freud mais comprometido
Estaríamos nós gozando litros

Clitólitros

Tomates estraçalhados

Olhei em volta. Procurando pelo abridor de vinho. Pilha de panelas desabava. Numa pia, tomates estraçalhados. Tufo de poeira no chão. Pedaços indefiníveis grudavam, pretos, no meu pé. Procuro atrás da geladeira. Saco plástico, pote vazio, tufos de poeira. Peguei o pote. Esfreguei um pé no outro. Em cima da geladeira, se espalhavam a terra, as rolhas e as plantas que eu dei. Seu olho me encarava. Talvez não. Na outra pia, pilha de louça. Corri os olhos. Ali não estava também. Desistimos. Empurramos a rolha. Com faca suja de creme branco. Por pouco não a usa assim mesmo. Passa água na lâmina, eu esfolo a rolha e você empurra pra dentro. Vinho com pedaços de rolha não tem problema. Mas a sua mão sim, porque vem, bruta, pra cima de mim. Encosta no meu útero dolorido, e ele reage. Sente. Passa sem jeito por dentro meu vestido e encosta meu seio escondido. Meu mamilo reclama. Joga o peso do seu corpo todo sobre meu colo, frágil. Desde criança sempre quis ser forte, igual o Popeye. Conseguiu. Aquela força bruta que me ataca. O beijo é sem língua, agressivo, de cheiro enjoado. E eu sensível demais, época do mês. Fica por cima de mim, eu não aguento o peso. Insisto que não. Fala. Tenta me colocar em cima, mas eu não quero. Não tenho desejo porque mais parece uma luta. Saio, e preciso afirmar que não. Ele me segura firme e insiste rindo. Esgueiro-me pelas beiradas. Saio correndo de fininho.
Tem dias que a beleza do mundo nos toca
Mesmo com pressa, mesmo com cansaço
Mesmo com dor
A beleza das pequenezas
Dos olhares
Dos embaraços
No mundo há tanta beleza
Que parece que não cabe em nós
Tem dias
Que transborda
A beleza do mundo.
As coisas que não tem matéria
Encostam em nós.
Tem dias.
A beleza é tanta que escorre pelo cantinho dos olhos.
Tudo é belo.
Miudeza e giganteza,

Em tudo há beleza

Taiane

Conheci uma mulher de onze anos. Meus vinte e cinco se curvaram diante de sua experiência. Era uma caçadora, conhecedora dos animais, dos locais de desova dos bichos de casco e das plantas de comer. Me ensinou o que era patinha, marreca, tracajá, iaçá, zé prego, coroquinha e mais nomes que eu mesma já esqueci. Somavam três os bebês criados por ela. Parece que por aqui os meninos podem ser meninos até mais tarde, mas as meninas só podem ser mulheres. Essa mulher que eu conheci reclamava da solidão, que os meninos eram unidos mas ela não tinha com quem ficar. Ela disse que abriria mão do quarto só pra ela para ter a companhia de uma irmã. Mas os pais dela só sabiam fazer meninos.
Seus olhos profundos fitavam tudo ao seu redor, sem que se desviassem por muito tempo do bebê no colo. Os pais foram pescar, e ela precisava fazer o almoço, estender a roupa e lavar as sujas. Fazia tudo sem tirar o irmão do colo porque por um segundo que o soltasse, ele começada a chorar. Ela disse que fazia isso porque o mimava. O bebê só sabia chamar pelo pai e por ela, pela mãe não chamava.
Com o menino de oito meses no colo, subia na canoa, abria o fundo falso, pegava o tracajá pra me mostrar, pulava de volta pro flutuante, estendia roupa, pulava pro motor vizinho, trocava fraudas. Tudo com muita habilidade. Os olhinhos vivos brilhavam quando me convidava pra caçar mais tarde, caminhar, olhar os pássaros. Disse que depois que a mãe chegasse da pesca, que ela lavasse roupa e arrumasse o flutuante, depois que não tivesse mais o que fazer, a gente poderia passear juntas. Ela me mostraria como matar os bichos. E ia com o menino no colo mesmo.
Enquanto banhava o menino com uma panela furada por um jacaré, me confessou que tinha medo de chegar na beira quando estava sozinha. E medo de ficar muito tempo ali só com o bebê. Ela faz isso desde os oito anos, um irmão colado no outro. Nenhuma irmã. A mulher tinha a pele dourada, os cabelos escuros com as pontas loiras, e tinha medo de lavá-los no rio por causa dos jacarés. Mesmo assim eram lindos.
Assumiu ares de menina quando cismou de catar ovos de marreca. Insistiu pra que eu fosse com ela, pegou a canoa e remou até onde eu pudesse entrar. Dirigiu o motor até onde sabia que encontraria o ninho. Trepou no pau de árvore, escalou suas raízes, o tronco, e foi até o ninho da bicha. Ensinou como se fazia ao menino de dezesseis que ia conosco. Arrumou uma forquilha, um chapéu, se enfiou no buraco e apanhou os vinte ovos que tinha na ninhada. O buraco no pau era de uma profundidade do tamanho do corpo dela. Examinando lá dentro, por vezes, só tinha a testa pra fora. Morria de rir procurando a forquilha, gargalhava se enfiando no buraco. Mangava da bestice minha e do menino que pouco sabíamos sobre tudo aquilo. Encontrar os ovos de marreca era uma diversão sem tamanho. Quando ria, abria bem a boca, expunha seus dentões brancos e os olhos ficavam pequeninos, era uma criancinha.

Voltando da coleta de ovos, retomou a mulher que era, dirigindo a rabeta até o flutuante. Pegando de novo o menino no colo pra mãe poder pescar, preparou a janta.

Poema sem pensar

Como fosse simples me livrar de você
Eu decido
Não quero mais te escutar
Te ouvir falar
Me ensurdecer
Mas você me aparece nos sonhos
Nos inimagináveis pensamentos
E me pego falando
Degustando,
Memorando,
Você.
Te odeio quando penso em tudo o que és
E te amo
Pensando o quão medíocre fui
Quando me apaixonei por um telefone
Ao revés
E vivo no intercambio
Da realidade com a verdade
Sem saber ao certo
Ao que devo minha liberdade
Até lembrar do seu jeito de olhar
De falar
De afirmar com o rosto
O que sabes ser verdade,
Pelas notícias de jornais.
Da sua curiosidade.
Crueldade!
Me derreto
Em forma de vaidade.

No que diz respeito à arte

No que diz respeito à arte, o que mais me interessa são os artistas. Não exatamente os artistas em sua gloria, no momento brilhante do palco, nos aplausos ou no reconhecimento de sua genialidade. A obra pronta tampouco é o mais fascinante. Atraio-me sobretudo pelo processo criativo. Por todos os motivos que fazem alguém se dedicar ao que quer que seja. Pelos bastidores. A parte esquisita e introspectiva, as questões emocionais que levam o artista a se entregar à arte. A dor que leva ao abraço de um violão, a angustia que se cura abrindo suavemente os braços numa dança, o calor do corpo de quem se expressa pelo ritmo da percussão. As inspirações. O extravasamento. A pessoa que existia antes do encontro com a forma de expressão artística da qual se utiliza. Nossas questões internas são os pilares da arte, e esta, nossa fuga primordial. Repleta de dor e loucura, é ela quem nos tira das trevas. Quanto mais experimentamos de sua terapia, maior é a busca, a dedicação, o vício, e então nascem os artistas, os “gênios”. Os gênios são, portanto, viciados na busca da solução de seus fantasmas. Ou no efeito que essa infinita busca gera. Os loucos também o são. Gênios.

Espiritualidade psicoativa

A respeito da espiritualidade dos adictos em maconha, acredito, seja efeito do psicoativo. Ainda sem saber exatamente o que se passa, principalmente pelo tabu que a ciência enfrenta pra estudar o vegetal mais amado e odiado pela humanidade, seguimos sem entender o que se passa na mente dos fumantes. Cada um é um universo e em cada mente, a marijuana atua de uma forma, entorpece, agita, acalma, entristece, cura depressão. Só dá pra saber fumando. O mito de que maconha não vicia é insustentável, vide o tanto de maconheiro que precisa fumar pra comer, fumar pra dormir, fumar pra se sentir vivo.
A maconha é, de fato, uma companheira pros solitários, uma camomila pros ansiosos e uma pílula de felicidade pros pouco criativos. Um efeito recorrente, porém, é a espiritualidade que ela causa nos usuários. De alguma forma, quem fuma se aproxima dos outros seres vivos, da natureza, de deus e de si mesmo. É romântico e ao mesmo tempo assustador se pensarmos que essa espiritualidade pode nada mais ser do que um efeito colateral que se adquire com os anos de baseados diários. E nem sempre precisam ser diários, há quem adquira a espiritualidade muito facilmente, mas esses, acredito, já haviam de ter algum pezinho no céu.

E então fica a contradição entre a beleza da aproximação com o divino e a estupidez de ser esta um simples efeito, químico, molecular, cerebral, ou ainda quem sabe, comportamental, o qual adota-se pra melhor entrosar-se com os outros que fumam. Quão patéticos podemos ser! 

Três vezes arte

Alguém estava triste na rua, Recuperando-se do dia inteiro sofrido Tentaram distraí-lo de seu sofrimento Enganando-o com as gritaria...