Foi quando
seus pais foram presos em Pernambuco que teve que vir fugido pro Rio de
Janeiro. Naquela época, quem era contra o governo era preso, espancado,
torturado. Teve que largar tudo e tentar a sorte por outras bandas, bem longe. Conseguiu
serviço, foi vivendo como podia até seus pais serem soltos, dois anos depois.
Aprendeu o seu lugar no mundo, a submissão, o calar-se, o não calar-se e todas
as consequências. Aprendeu com a família a revolução, e sozinho, a revolta.
Ganhou um terreno
do partido do qual o pai era filiado. Um lugar no meio da cidade, mas rodeado
de mata. Disseram pra ele que era posse. Herdou. Conheceu uma moça, conheceu
outra, teve filhos, constituiu família. Naquele terreno abrigou filhos,
sobrinhos, netos, cunhada. Houve quem se aproximasse demais, vizinhos tascando
pedacinhos da terra. Mas brigar por causa de terra pra quê? Deixou que
plantassem o que quisessem por ali, não havia problema. Até o momento em que
percebeu a importância de colocar uma cerca.
- Daqui pra cá
é meu, dali pra lá é seu. – Falou para os vizinhos, pensando o quanto
incomodava esse negócio de ter que botar cerca.
No mato,
cultivava junto com banana, abóbora, aipim, toda a sua vida e suas ideias.
Cultivava com o carinho abrutalhado dos que não recebem muito carinho da vida.
Ali naquelas bandas sem asfalto, sem coleta de lixo, sem esgoto, com
pouquíssimas casas, só queria uma vida em paz, descansada, esquecendo os dias
de fuga. Fugindo, encontrou-se. Hoje, depois de tudo que passara, sentia-se rico.
Aconteceu que com o tempo foi tudo mudando, teve gente
demais chegando, cercando, jogando esgoto no rio onde costumava pescar. Certo
dia pensava nisso enquanto descansava depois do almoço, até que a filha, interrompendo-o,
anunciou:
- Ô pai, faz
uma semana já! O lixo tá lotado!
- Eu sei,
minha filha, to indo. – Ele respondeu, mas na verdade havia perdido a noção do
tempo.
Tinha que
levar o saco de lixo no asfalto, onde passava a coleta. Levava-o sempre duas vezes
na semana, porém, dessa vez, a semana estava acabando e ainda não cumprira sua
tarefa. Pensou que devia ser coisa da velhice. Carregava consigo a certeza
absoluta de que a coleta de lixo e o asfalto acabariam com aquele lugar e, por
isso, defendia que ficasse como estava, sem estrutura. Nesse dia, levando o
saco de lixo nas costas, passou pela margem do rio, viu aqueles meninos se banhando,
às gargalhadas, e sentiu pena. Gostaria que pudessem sentir a água limpa e
fresca no corpo, como antigamente. Não reconheceu um rosto que pudesse cumprimentar,
era gente nova. Passou olhando de cabeça baixa. Um dos meninos percebeu, mas
desviou o olhar. Deixou o lixo no asfalto, e no caminho de volta os meninos
ainda estavam ali. Pensou o quanto era mal educada e sem respeito essa nova
geração de gente da cidade.
- Vieram junto
com o esgoto. – sussurrou baixinho, repensando a pena que sentira no caminho de
ida.
Certa manhã,
soube por um dos vizinhos que corriam o risco de serem expulsos daquelas
terras. Iam levar gente pra lá, fazer condomínio, apartamento, shopping,
pracinha. Sentiu o medo no ar, nas águas, na mata, nas ruas, nos rostos. Não
demorou e a prefeitura veio bater em sua porta pedindo pra entrar. Ele ficou
tonto quando soube, a pressão subiu, teve medo de morrer de tanta emoção
misturada que transbordava.
- Boa tarde,
seu César.
- Boa.
- Somos
fiscais da prefeitura, gostaríamos de saber se o senhor autoriza a gente a avaliar
o terreno do senhor. O senhor deve estar sabendo do projeto de melhorias da
região. A associação de moradores permitiu a nossa entrada.
Engolindo em
seco, seu César lembrava os outros abusos que passara na vida. E pensou que na
idade dele, as consequências não importavam tanto quanto antes. Teve vontade de
gritar, bater, chorar.
- E como cês
vão avaliar o terreno? – perguntou enquanto analisava a calça cargo e o colete verde
cheio de bolsos que vestiam. Teve a impressão de que estavam fantasiados.
- Só
precisamos capinar uma parte e fazer algumas medições, vamos deixar até mais
bonito!
Não conseguiu
engolir, nem em seco, a ousadia de pensarem conseguir deixar o terreno mais
bonito. Aquele terreno era lindo, era dele, era ele. E se era mato, é porque
ele era mato. Ele amava o mato, e insistia em dizer pra todo mundo que não era
preguiça de trabalhar a terra, mas porque o mato era lindo mesmo. Lembrou-se de
que o seu vizinho, quando para ali se mudou, disse-lhe que o cipó era mato sem
qualidade e que ele deveria arrancá-lo, pois agarrava no pé. Ele sabia que
aquilo estava errado, que o cipó deixava a terra úmida, protegia as raízes das
plantas e as minhocas. Ele conhecia a importância do cipó para as
minhocas e das minhocas pra terra. Ele sabia de tudo isso, mas não
falou, reduziu-se a olhar para o vizinho com aquele olhar desconfiado das
pessoas do mato. Retomou a realidade, olhou naqueles olhos de fiscais de
prefeitura, quis falar sobre os cipós. Lembrou-se do contexto, quis falar, quis
calar-se. E falou:
- Aqui não vai
tirar uma coisa de capim. Do rio pra cá o senhor não vai mexer um nada. O
senhor é um laranja, mandado pelo seu prefeito e o seu prefeito é um canalha,
pode dizer que eu mandei dizer isso a ele. Aqui não vai entrar, não. O pobre, tá
morrendo de fome, tá desempregado e se troca até por uma dentadura pra dar um
voto a um safado desse. E eu não sou desse, minha qualidade não é essa. Mas num
sou mermo. Porque eu passei fome pra caramba, muita coisa mermo, tá? Comi o
lado ruim da maçã estragada, tá? Mas não precisei panhar dinheiro com político
nenhum pra nada. Meu pai também nunca foi disso, minha mãe também, essa aí
então nem se fala. O senhor pode sair daqui que dessa cerca o senhor não passa.
Os fiscais
foram embora. Seu César sentou-se na varanda tentando controlar a pressão com a
respiração. Pensou que não devia ter falado daquele jeito. Teve medo. Depois
pensou que devia ter falado ainda mais bravo. Teve orgulho. Pensou que era um
homem revoltado e gostou da ideia.
- Eu sou mais
de brigar pra ficar dentro desse mato aqui igual um bicho mermo, não quero nem
saber de nada. – Falou em voz alta, pro mato em volta, pras galinhas e pros
lagartos do quintal.