segunda-feira, 22 de setembro de 2014

A qualidade do cipó

Foi quando seus pais foram presos em Pernambuco que teve que vir fugido pro Rio de Janeiro. Naquela época, quem era contra o governo era preso, espancado, torturado. Teve que largar tudo e tentar a sorte por outras bandas, bem longe. Conseguiu serviço, foi vivendo como podia até seus pais serem soltos, dois anos depois. Aprendeu o seu lugar no mundo, a submissão, o calar-se, o não calar-se e todas as consequências. Aprendeu com a família a revolução, e sozinho, a revolta.
Ganhou um terreno do partido do qual o pai era filiado. Um lugar no meio da cidade, mas rodeado de mata. Disseram pra ele que era posse. Herdou. Conheceu uma moça, conheceu outra, teve filhos, constituiu família. Naquele terreno abrigou filhos, sobrinhos, netos, cunhada. Houve quem se aproximasse demais, vizinhos tascando pedacinhos da terra. Mas brigar por causa de terra pra quê? Deixou que plantassem o que quisessem por ali, não havia problema. Até o momento em que percebeu a importância de colocar uma cerca.
- Daqui pra cá é meu, dali pra lá é seu. – Falou para os vizinhos, pensando o quanto incomodava esse negócio de ter que botar cerca.
No mato, cultivava junto com banana, abóbora, aipim, toda a sua vida e suas ideias. Cultivava com o carinho abrutalhado dos que não recebem muito carinho da vida. Ali naquelas bandas sem asfalto, sem coleta de lixo, sem esgoto, com pouquíssimas casas, só queria uma vida em paz, descansada, esquecendo os dias de fuga. Fugindo, encontrou-se. Hoje, depois de tudo que passara, sentia-se rico. Aconteceu que com o tempo foi tudo mudando, teve gente demais chegando, cercando, jogando esgoto no rio onde costumava pescar. Certo dia pensava nisso enquanto descansava depois do almoço, até que a filha, interrompendo-o, anunciou:
- Ô pai, faz uma semana já! O lixo tá lotado!
- Eu sei, minha filha, to indo. – Ele respondeu, mas na verdade havia perdido a noção do tempo.
Tinha que levar o saco de lixo no asfalto, onde passava a coleta. Levava-o sempre duas vezes na semana, porém, dessa vez, a semana estava acabando e ainda não cumprira sua tarefa. Pensou que devia ser coisa da velhice. Carregava consigo a certeza absoluta de que a coleta de lixo e o asfalto acabariam com aquele lugar e, por isso, defendia que ficasse como estava, sem estrutura. Nesse dia, levando o saco de lixo nas costas, passou pela margem do rio, viu aqueles meninos se banhando, às gargalhadas, e sentiu pena. Gostaria que pudessem sentir a água limpa e fresca no corpo, como antigamente. Não reconheceu um rosto que pudesse cumprimentar, era gente nova. Passou olhando de cabeça baixa. Um dos meninos percebeu, mas desviou o olhar. Deixou o lixo no asfalto, e no caminho de volta os meninos ainda estavam ali. Pensou o quanto era mal educada e sem respeito essa nova geração de gente da cidade.
- Vieram junto com o esgoto. – sussurrou baixinho, repensando a pena que sentira no caminho de ida.
Certa manhã, soube por um dos vizinhos que corriam o risco de serem expulsos daquelas terras. Iam levar gente pra lá, fazer condomínio, apartamento, shopping, pracinha. Sentiu o medo no ar, nas águas, na mata, nas ruas, nos rostos. Não demorou e a prefeitura veio bater em sua porta pedindo pra entrar. Ele ficou tonto quando soube, a pressão subiu, teve medo de morrer de tanta emoção misturada que transbordava.
- Boa tarde, seu César.
- Boa.
- Somos fiscais da prefeitura, gostaríamos de saber se o senhor autoriza a gente a avaliar o terreno do senhor. O senhor deve estar sabendo do projeto de melhorias da região. A associação de moradores permitiu a nossa entrada.
Engolindo em seco, seu César lembrava os outros abusos que passara na vida. E pensou que na idade dele, as consequências não importavam tanto quanto antes. Teve vontade de gritar, bater, chorar.
- E como cês vão avaliar o terreno? – perguntou enquanto analisava a calça cargo e o colete verde cheio de bolsos que vestiam. Teve a impressão de que estavam fantasiados.
- Só precisamos capinar uma parte e fazer algumas medições, vamos deixar até mais bonito!
Não conseguiu engolir, nem em seco, a ousadia de pensarem conseguir deixar o terreno mais bonito. Aquele terreno era lindo, era dele, era ele. E se era mato, é porque ele era mato. Ele amava o mato, e insistia em dizer pra todo mundo que não era preguiça de trabalhar a terra, mas porque o mato era lindo mesmo. Lembrou-se de que o seu vizinho, quando para ali se mudou, disse-lhe que o cipó era mato sem qualidade e que ele deveria arrancá-lo, pois agarrava no pé. Ele sabia que aquilo estava errado, que o cipó deixava a terra úmida, protegia as raízes das plantas e as minhocas. Ele conhecia a importância do cipó para as minhocas e das minhocas pra terra. Ele sabia de tudo isso, mas não falou, reduziu-se a olhar para o vizinho com aquele olhar desconfiado das pessoas do mato. Retomou a realidade, olhou naqueles olhos de fiscais de prefeitura, quis falar sobre os cipós. Lembrou-se do contexto, quis falar, quis calar-se. E falou:
- Aqui não vai tirar uma coisa de capim. Do rio pra cá o senhor não vai mexer um nada. O senhor é um laranja, mandado pelo seu prefeito e o seu prefeito é um canalha, pode dizer que eu mandei dizer isso a ele. Aqui não vai entrar, não. O pobre, tá morrendo de fome, tá desempregado e se troca até por uma dentadura pra dar um voto a um safado desse. E eu não sou desse, minha qualidade não é essa. Mas num sou mermo. Porque eu passei fome pra caramba, muita coisa mermo, tá? Comi o lado ruim da maçã estragada, tá? Mas não precisei panhar dinheiro com político nenhum pra nada. Meu pai também nunca foi disso, minha mãe também, essa aí então nem se fala. O senhor pode sair daqui que dessa cerca o senhor não passa.
Os fiscais foram embora. Seu César sentou-se na varanda tentando controlar a pressão com a respiração. Pensou que não devia ter falado daquele jeito. Teve medo. Depois pensou que devia ter falado ainda mais bravo. Teve orgulho. Pensou que era um homem revoltado e gostou da ideia.

- Eu sou mais de brigar pra ficar dentro desse mato aqui igual um bicho mermo, não quero nem saber de nada. – Falou em voz alta, pro mato em volta, pras galinhas e pros lagartos do quintal.

O lugar dos pombos

Havia chovido a tarde toda. Depois das nove horas diárias de ofício, sendo uma reservada para engolir a quentinha que compravam da pensão da esquina, se encontraram em um bar metido a pizzaria. As mesas na calçada, as cadeiras dobráveis de madeira e o papel que disfarçava a higiene duvidosa abaixo de seus cotovelos apoiados entregavam a origem boêmia da atual pizzaria com restritas quinze opções de sabores no cardápio.
- Vai querer o que? - Perguntou ela.
- A aniversariante é você, pode escolher! - Sorriu forçando cortesia.
- Não quero esse pepino de presente, não! Você é sempre todo complicado pra escolher uma simples pizza! Pra mim tanto faz.
- Pra mim também, menos frango com catupiry.
- Isso não ajuda muito. - Ela retrucou
Evitando se estender para uma inútil discussão, como era habitual entre eles, ele sugeriu calabresa. Ela acatou. Eram seis horas da tarde, mas já aparentava noite alta, com poucas pessoas na rua e a escuridão característica dos dias nublados.
- Tomara que não volte a chover forte! Essa marquise é estreita!
Sem responder, ela buscou o garçom mexendo apenas os olhos. Impacientava-se com conversas que não exigiam contrapontos, julgava-as desnecessárias. Enquanto isso, o garçom no interior do bar ocupava-se com alguma atividade no balcão, e mesmo sendo os únicos clientes, não os dava qualquer atenção desde que haviam sentado.
- Porque você não chama o garçom? – Ela perguntou.
Ele percebia o machismo nela nos pequenos detalhes, mesmo sabendo que os anos de estudos feministas dela apontavam o oposto. Não tocou no assunto, mas chamou o garçom com um ruído entre assovio e grito. O garçom se aproximou a passos lentos, com um pano de prato sujo pendurado no ombro e a expressão do tédio estampada no rosto, na postura e na voz.
- Pois não?
- Uma pizza de calabresa média e uma Brahma, por favor?
Depois de quinze anos de casados, ainda não entendia porque ele insistia na Brahma, cerveja aguada que se bebe quando jovem. Aos quarenta e dois, já deveria ter apurado esse paladar, ela pensava. Apesar de nada dizer, a expressão facial dela entregava esses pensamentos. Ele percebeu.
- Conseguiu trocar o despertador? – Ele tentou se esquivar.
- Quase! Fui à loja na hora do almoço, mas a fila estava imensa! Desisti!
- Pena que veio enguiçado! Mas você gostou, né?
- Gostei, sim! Não se preocupe com isso.
O emprego dela não era o dos sonhos, mas acreditava que agora era tarde demais para buscar uma mudança e correr o risco de ficar desempregada por um tempo. Ela pagava a maior parte das contas da casa.
- Hoje aconteceu uma coisa incrível no meu dia, amor! Sabe aquele comercial que dei a ideia? Do tênis? Ficou pronto! Saiu da edição hoje e vão passar em horário nobre! Nunca passaram uma propaganda minha em horário nobre. – Ele dizia com os olhos sorrindo.
- Que legal, meu bem! Parabéns!
- Lembra quando pensei naquela ideia? Você estava!
- Mais ou menos. – Ela não fazia ideia.
Enquanto ele narrava o momento da inspiração dele, ela fingia interesse enquanto reparava no garçom. Ele com aquele ar tedioso e a barriga apontando no avental branco surrado tinha ganhado um animo inesperado e se movimentava de uma forma que não condizia com sua aparente falta de energia. Sacudia, sem alterar a expressão do olhar e com a cabeça baixa, um poste daqueles que serve apenas pra sustentar uma placa de transito. Ela se perguntava que diabos ele estava fazendo. Não podia olhar por muito tempo, porque ele falava alguma coisa importante. Foi quando direcionou o olhar pra cima do poste e viu os pombos voando. Ele impedia os pombos de ficarem no poste por alguma razão.
- Legal essa ideia mesmo! Você está crescendo na sua profissão, isso é ótimo!
Ele continuou falando qualquer coisa. Ela pensava nos pombos. Pensava nos motivos daquele homem expulsar as aves dali. Talvez odiasse pombos, ou não queria que fizessem coco na calçada da frente do bar. Será que eram ordens do dono do estabelecimento? Ele não tinha mais o que fazer? Não parecia sentir prazer naquilo. Ela sentiu que, de alguma forma, sempre tem alguém tentando tirar os outros de onde desejam estar. Mesmo que não seja vontade que incendeia, tem algum motivo que faz com que os outros te sacudam, te desviem dos seus próprios desejos. E quando você vê, já está distante de onde gostaria que estivesse, como os pombos que iam pra banca de jornal no outro lado da rua. Nunca havia sentido empatia por pombos na vida.
- Você tá vendo essa situação que engraçada? Ele disse.
- O que?
- Esse figura balançando o poste. Porque tá fazendo isso? - Ele fazia graça.
- É mesmo! Acho que tá expulsando os pombos.
- Não tinha notado! Pensei que estava só se divertindo. – Ele ria sozinho.
O garçom reparou que olhavam pra ele. Perguntou se queriam mais alguma coisa. Recusaram. Ele entrou e sentou-se numa mesa de frente pra televisão que gritava a novela.
- Luiz chamou a gente pra almoçar na casa dele no sábado. Vamos?
- De novo? Não aguento mais ir na casa dele, ficamos presos naquele apartamento quente o dia todo bebendo sem parar. – Ela procurava qualquer desculpa pra evitar o cunhado.
- Você que sabe. Mas ficar o sábado em casa também é um saco, né. Você podia sugerir alguma coisa.
- Vou pensar!
Depois de minutos esperando em silêncio, a pizza chega. O garçom serve as fatias e volta a expulsar os pombos do poste. Nessa hora, ela notou que os pombos tinham voltado ao poste. Era a notável insistência de quem sabe onde quer estar. Perguntou a si mesma se tinha insistido em alguma ideia sua ao longo da sua vida. Não conseguiu pensar em nenhuma. Todas iam e vinham numa maré de pensamentos, quase nenhuma fixou. Assim, foi fazendo o que era necessário em cada momento da vida, sem se perguntar o lugar que queria ocupar no mundo.
Ele olhou pra ela e desviou o olhar pro garçom, como quem aponta com os olhos, e deu uma risadinha enquanto mastigava a pizza. Ela sorriu sem mostrar os dentes. Os pombos estavam novamente na banca de jornal do outro lado da rua.
- Lembra dos nossos vinte anos, Pedro? Você era lindo!
- E você continua! – Ele queria fazer sexo naquela noite. Já fazia duas semanas!

Ela sorriu com sinceridade. Terminaram a pizza, pagaram a conta e quando estavam indo embora, ela notou que os pombos ainda estavam na banca de jornal do outro lado da rua, mesmo tendo passado bastante tempo desde que levaram a ultima sacudida do poste. Resignou-se, pensando na notável insistência daqueles que tiram os outros de onde desejam estar.

segunda-feira, 28 de julho de 2014

A imperfeita arte da perfeição

Com uns quatro aninhos de idade, tive um problema nos joelhos que deixavam meus pés virados pra dentro. Por recomendação médica, minha mãe me colocou no ballet. Lembro-me das aulas, das outras bailarininhas, dos exercícios que alternavam pé de palhaço e pé de bailarina. Lembro, sobretudo, do espelho gigantesco. Aquele reflexo denunciava a sala inteira, não deixava escapar nenhum detalhe de nossas aparências. Foi quando eu me comparei com as outras meninas, me achei feia, insegura e pedi pra sair do ballet com a frase tão repetida pela minha mãe ao longo da vida “Mãe, não sou uma bailarina, eu sou a sua filhinha!”.
A partir de então a dança me acompanhou como uma alma penada que sussurra no ouvido. Relutante ao ballet, experimentei diversas outras danças até dar outra chance ao clássico. Dei. Arrependi-me. Dei de novo. Desisti. Amadureci, mas alguma coisa ainda me dizia que eu não conseguiria. Porém, com vinte anos percebi que não adiantava fugir, aquela vozinha continuava sussurrando e procurei uma boa aula de iniciante adulto. Depois de muitas aulas experimentas, escolhi a minha acadêmica de aulas livres. Fui ficando e explodi de alegria quando chegou a sapatilha de ponta. Fiz amizades, não me comparava mais a elas. Tive altos e baixos, persistência e quase desistência. Para mim, mais que uma paixão, o ballet tornou-se uma produção cultural a ser estudada, compreendida e (porque não) criticada.
O ballet é uma dança de rigidez, de busca pela perfeição. É difícil conseguir se expressar não dominando a técnica. É uma dança de dedicação e, definitivamente, brinca com a segurança e insegurança de quem se arrisca a aprendê-la. Isso eu aprendi aos quatro anos. De alguma forma eu entendi que aquilo não me deixava ser inteiramente eu, que procurava me moldar. É preciso ser ainda mais forte pra dominar esse poder do ballet clássico, e nisso está uma das tantas belezas ocultas dessa arte. Apesar da disciplinante inflexibilidade, é inexplicável a força que une o ballet a nós, bailarinas. Ele está conosco a todo o momento, e não conseguimos nos desfazer disso. Vejo na minha academia de dança artistas de 7, 15, 20, 32 anos. Elas sentem e transmitem. Elas respondem à música com o batucar da ponta dos pés. Muitas vezes falham na técnica, mas conseguem contornar as falhas com a alma. É lindo de ver. Essa dança, porém, é culturalmente vista como infantil, é tachada de esnobe, é coisa de gente rica e metida. Nas apresentações, dançamos pros nossos pais e amigos, que estão lá pra nos agradar. Às vezes conseguimos fisgar o deleite de um ou de outro em meio ao espetáculo, mas via de regra, o nosso público é inexistente. Apesar de invisíveis, de imperfeitas, cobradas internamente e, muitas vezes, sem dinheiro as bailarinas não largam a dança, de alguma forma sabem que existe uma luz dentro delas que não apaga nunca e que, quando estão longe da mais clássica das danças, só faz aumentar e aumentar até incomodar, cegar. O mundo só se acalma na dança.

quarta-feira, 4 de junho de 2014

Nossa cultura animal

Existem várias definições de cultura, formuladas por pensadores de diferentes épocas. Eu não sei nenhuma minuciosamente, mas já escutei e li sobre algumas. Sei também o que é cultura pelo senso comum. Aquele conjunto de hábitos, rituais, a moral e o pensamento que rege determinada população humana e que a faz ser diferente das demais. Cultura é, portanto, uma exclusividade humana, e não cai bem discordar desse ponto.
Sei disso porque já discordei, sem nenhum embasamento, confesso. Mas perguntei pra diferentes pessoas, professores, alunos, mães e avós, se acreditavam que existia cultura em outros seres vivos. O consenso era que não. Cultura é humano. Porém, o que me faz pensar que essa afirmação pode não ser inteiramente verdadeira é que somos seres humanos, e com isso, carregamos nossas limitações em interpretar o mundo à nossa maneira. Será, que humanos que somos, conseguiríamos identificar a cultura que existe em outras espécies de seres vivos? Poderíamos, como já acontece, encontrar alguns traços de cultura em primatas (chimpanzés, bonobos, macacos-prego), mas porque conseguimos identificar a nossa cultura em alguns dos seus comportamentos. Porém, a nossa forma de ver o mundo e a nossa cultura não é a única que existe sobre esse planeta. Talvez, outras formas de ver o mundo criem diferentes culturas, as quais, com o nosso olhar limitadamente humano, não conseguimos identificar de forma alguma. Como poderíamos saber se o comportamento estruturado de um formigueiro é meramente instintivo e não cultural? Ou ainda, para fugir dos animais sociais, se a aranha viúva-negra se alimenta do parceiro sexual após a cópula não por instinto, mas por alguma forma de transmissão? E os coalas que, ainda bebês, aprendem com as mães a se alimentar das fezes delas para adquirirem a enzima que lhes permitirão se alimentar de brotos, e unicamente de brotos, para o resto de suas vidas? Uma das características da cultura (como nós a compreendemos) não é, afinal, a transmissão de costumes geração para geração? Isso só pra pensar nos animais. E as plantas que se comunicam unindo suas raízes e lançando compostos voláteis no ar para os vizinhos a perceberem? E a interação inseto-planta? Tudo mecânico, guiado pela cega evolução?
Dentre tantas pessoas que perguntei a respeito dessa minha ideia fixa, que pode ser também ridícula, consegui uma única resposta que achei interessantíssima, de uma professora de antropologia. Ela defendeu a ideia de que, sim, podemos não conceber as diferentes formas de cultura passíveis de existência na natureza, mas isso é um reflexo de algo muito mais remoto presente, sobretudo na cultura humana ocidental, que é a mania indomável de separar natureza e cultura. Se tivéssemos, portanto, outra forma de enxergar a vida poderíamos conceber que tudo faz parte de um mesmo pacote, onde não existe a diferença instinto e cultura, o que é “natural” e o que é “aprendizado”. Enquanto uns dizem que nada é natural, tudo é construído, eu me atrevo a dizer que tudo é natural, mesmo as construções. Ou, ainda, não é nem natural (instintivo) nem construído (cultural), é uma terceira palavra que engloba as duas de uma só vez e que pode, enfim, calar essa dicotomia infinita.

Talvez mexa muito com a nossa autoestima pensar que não somos animais especiais, super-animais, animais encantados. Queremos nos gabar de nossa sociabilidade, nossa interação e linguagem e ousamos dizer que somos os únicos seres vivos com “alma”. Será que se igualarmos os outros seres vivos ao patamar que construímos pra nós mesmos estaremos nos submetendo? Ou simplesmente aceitando a vida como ela é? Afinal, não derivamos todos de um ancestral comum? Fico pensando que se aparecessem extraterrestres totalmente diferentes de nós, mas que decidissem nos estudar, se eles diriam que as festas, os jantares em família de domingo, assistir televisão e construir hidrelétricas não seriam simples instintos, conhecidamente mecanizados, os quais a humanidade segue cegamente, só porque eles teriam uma visão “extraterresterizada” da vida e não compreenderiam a nossa forma de ver o mundo, que se reflete na nossa cultura.

segunda-feira, 2 de junho de 2014

Embalo

Aquele amor embalado ao som de xote, da voz do nosso amigo, daquele gingado que só fazia parte da gente mesmo. O amor que se fazia no meio da lapa, com cheiro de cerveja, fumaça e lágrimas. Da inspiração que vem de longe. Da solidão que se sentia de madrugada, sem estar por perto. E a sensação de confusão, e a falta de inspiração quando não dá mais pra jogar pra fora tudo o que se passa. As palavras já se esforçam pra sair e a chama se apaga. Tudo saiu.

Liquefação

O amor talvez não precise ser duro, sólido, recheado de cristais pontiagudos. O sólido cria rachaduras que se quebram com o tempo. Ao enrijecer, a parte boa entremeia-se na ruim e tudo se torna um só corpo, sem lacunas. Nada tão inflexível pode durar muito. O amor não por isso precisa se tornar gás. Feito ar, pode tornar-se invisível e vai e vem tão depressa como uma respiração em nossos pulmões. Não se pode volatilizar sentimentos, as relações não precisam ser tão areadas só para evitar que endureçam. É um tanto injusto dispensar sensações boas por medo das ruins, deixar que tudo se evapore de uma vez sem que se possa discriminar o que está vazando.  Isso é negar o amor. Sem precisar de defesas, sem querer ser radical, porque não liquidificar nossas relações? A fluidez liquida permite contato e interação de todas as partes, boas e ruins. O líquido se modela ao ambiente, é capaz de mudar sua forma para completar por inteiro cada espaço vazio. Assim deveriam ser as relações, fluidas, possíveis de completar nossos pequenos espaços, onde não conseguimos sentir o gás preencher e onde não há sólido que adentre. Com menos cobranças e, sobretudo sem leviandade, podemos liquefazer nossas emoções, e assim completar uns aos outros, mutuamente, livremente. Como fluido, vamos escorrendo sem freio por cada porta aberta, desviando de obstáculos até que tudo se inunde. Abrindo nossas portas, permitimos um banho das coisas boas que os outros podem nos oferecer. Não vai doer, não há pontas rígidas, somente extremidades curvas de líquido suave acariciando cada espaço pelo qual corre. Abra-se para ser preenchido pelo fluido dos outros, fluidifique-se para preencher os espaços vazios que encontrar. Liquefaça-se.

domingo, 1 de junho de 2014

Bicho de beringela

Lembro da primeira vez que abri uma beringela e me deparei com aqueles pontinhos marrons. Pensei que estava estragada, tinha passado do ponto. Como boa filha, gritei a minha mãe, ela saberia o que dizer, e assim fui apresentada para o bicho da beringela. Cortei com a ponta da faca os inconvenientes pontinhos e pronto, como se nunca estivessem estado ali. Depois desse episódio, e até hoje, vira e mexe encontro com esse bicho. Mas, afinal, que bicho é esse?
Como se não bastasse a presença insistente, nunca tenho certeza se aqueles pontinhos marrons são os bichos em si ou algum tipo de resquício que eles deixam. O mistério ainda se estende pra localização dos tais pontinhos, sempre parecem estar num mesmo sítio do vegetal. Como será que esses bichos se organizam? Será que se mexem? Porque ninguém dá a mínima pra eles? O bicho da goiaba deve se gabar da sua popularidade e zombar do bicho da beringela. O pobre coitado não é nem enojado, nem temido, apenas arrancado com a faca.
Ignorando se o bichinho faz mal ou bem pra nossa saúde ou se é simplesmente indiferente à ela, algumas pessoas preferem deixar a beringela de lado e substituir o vegetal pela segurança da abobrinha. Talvez ele seja tão essencial pra beringela que devemos aceitá-lo se quisermos saborear o seu delicioso roxeado. Pra mim, o bicho da beringela faz parte daquelas coisas invisíveis e inconvenientes, que você sabe que está ali, mas que ao mesmo tempo não vê com nitidez, e ignora tanto o assunto que é melhor não comentar, deixar pra lá. Além de invisível e inconveniente, também está no grupo das coisas constantes, como uma dor de cabeça que não passa por um dia inteiro. Toda hora reaparece e faz você enfrentar mais uma vez as dúvidas daquela existência. Mas nós insistimos em ignorá-lo. O bicho da beringela, assim como as coisas invisíveis, inconvenientes e constantes que nos aparecem diariamente, tem algo pra nos dizer. O que será?

Três vezes arte

Alguém estava triste na rua, Recuperando-se do dia inteiro sofrido Tentaram distraí-lo de seu sofrimento Enganando-o com as gritaria...