Com uns quatro aninhos de idade, tive um problema nos joelhos que deixavam meus pés virados
pra dentro. Por recomendação médica, minha mãe me colocou no ballet. Lembro-me
das aulas, das outras bailarininhas, dos exercícios que alternavam pé de
palhaço e pé de bailarina. Lembro, sobretudo, do espelho gigantesco. Aquele reflexo
denunciava a sala inteira, não deixava escapar nenhum detalhe de nossas aparências.
Foi quando eu me comparei com as outras meninas, me achei feia, insegura e pedi
pra sair do ballet com a frase tão repetida pela minha mãe ao longo da vida “Mãe,
não sou uma bailarina, eu sou a sua filhinha!”.
A partir de
então a dança me acompanhou como uma alma penada que sussurra no ouvido. Relutante
ao ballet, experimentei diversas outras danças até dar outra chance ao
clássico. Dei. Arrependi-me. Dei de novo. Desisti. Amadureci, mas alguma coisa
ainda me dizia que eu não conseguiria. Porém, com vinte anos percebi que não
adiantava fugir, aquela vozinha continuava sussurrando e procurei uma boa aula
de iniciante adulto. Depois de muitas aulas experimentas, escolhi a minha acadêmica
de aulas livres. Fui ficando e explodi de alegria quando chegou a
sapatilha de ponta. Fiz amizades, não me comparava mais a elas. Tive altos e
baixos, persistência e quase desistência. Para mim, mais que uma paixão, o
ballet tornou-se uma produção cultural a ser estudada, compreendida e (porque
não) criticada.
O ballet é uma
dança de rigidez, de busca pela perfeição. É difícil conseguir se expressar não
dominando a técnica. É uma dança de dedicação e, definitivamente, brinca com a
segurança e insegurança de quem se arrisca a aprendê-la. Isso eu aprendi aos
quatro anos. De alguma forma eu entendi que aquilo não me deixava ser inteiramente eu, que procurava me moldar. É preciso ser ainda mais forte pra dominar esse poder do ballet clássico, e nisso está uma das tantas belezas ocultas dessa arte. Apesar
da disciplinante inflexibilidade, é inexplicável a força que une o ballet a
nós, bailarinas. Ele está conosco a todo o momento, e não conseguimos nos
desfazer disso. Vejo na minha academia de dança artistas de 7, 15, 20, 32 anos.
Elas sentem e transmitem. Elas respondem à música com o batucar da ponta dos
pés. Muitas vezes falham na técnica, mas conseguem contornar as falhas com a
alma. É lindo de ver. Essa dança, porém, é culturalmente vista como infantil, é
tachada de esnobe, é coisa de gente rica e metida. Nas apresentações, dançamos
pros nossos pais e amigos, que estão lá pra nos agradar. Às vezes conseguimos
fisgar o deleite de um ou de outro em meio ao espetáculo, mas via de regra, o
nosso público é inexistente. Apesar de invisíveis, de imperfeitas, cobradas
internamente e, muitas vezes, sem dinheiro as bailarinas não largam a dança, de
alguma forma sabem que existe uma luz dentro delas que não apaga nunca e que,
quando estão longe da mais clássica das danças, só faz aumentar e aumentar até
incomodar, cegar. O mundo só se acalma na dança.
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