segunda-feira, 28 de julho de 2014

A imperfeita arte da perfeição

Com uns quatro aninhos de idade, tive um problema nos joelhos que deixavam meus pés virados pra dentro. Por recomendação médica, minha mãe me colocou no ballet. Lembro-me das aulas, das outras bailarininhas, dos exercícios que alternavam pé de palhaço e pé de bailarina. Lembro, sobretudo, do espelho gigantesco. Aquele reflexo denunciava a sala inteira, não deixava escapar nenhum detalhe de nossas aparências. Foi quando eu me comparei com as outras meninas, me achei feia, insegura e pedi pra sair do ballet com a frase tão repetida pela minha mãe ao longo da vida “Mãe, não sou uma bailarina, eu sou a sua filhinha!”.
A partir de então a dança me acompanhou como uma alma penada que sussurra no ouvido. Relutante ao ballet, experimentei diversas outras danças até dar outra chance ao clássico. Dei. Arrependi-me. Dei de novo. Desisti. Amadureci, mas alguma coisa ainda me dizia que eu não conseguiria. Porém, com vinte anos percebi que não adiantava fugir, aquela vozinha continuava sussurrando e procurei uma boa aula de iniciante adulto. Depois de muitas aulas experimentas, escolhi a minha acadêmica de aulas livres. Fui ficando e explodi de alegria quando chegou a sapatilha de ponta. Fiz amizades, não me comparava mais a elas. Tive altos e baixos, persistência e quase desistência. Para mim, mais que uma paixão, o ballet tornou-se uma produção cultural a ser estudada, compreendida e (porque não) criticada.
O ballet é uma dança de rigidez, de busca pela perfeição. É difícil conseguir se expressar não dominando a técnica. É uma dança de dedicação e, definitivamente, brinca com a segurança e insegurança de quem se arrisca a aprendê-la. Isso eu aprendi aos quatro anos. De alguma forma eu entendi que aquilo não me deixava ser inteiramente eu, que procurava me moldar. É preciso ser ainda mais forte pra dominar esse poder do ballet clássico, e nisso está uma das tantas belezas ocultas dessa arte. Apesar da disciplinante inflexibilidade, é inexplicável a força que une o ballet a nós, bailarinas. Ele está conosco a todo o momento, e não conseguimos nos desfazer disso. Vejo na minha academia de dança artistas de 7, 15, 20, 32 anos. Elas sentem e transmitem. Elas respondem à música com o batucar da ponta dos pés. Muitas vezes falham na técnica, mas conseguem contornar as falhas com a alma. É lindo de ver. Essa dança, porém, é culturalmente vista como infantil, é tachada de esnobe, é coisa de gente rica e metida. Nas apresentações, dançamos pros nossos pais e amigos, que estão lá pra nos agradar. Às vezes conseguimos fisgar o deleite de um ou de outro em meio ao espetáculo, mas via de regra, o nosso público é inexistente. Apesar de invisíveis, de imperfeitas, cobradas internamente e, muitas vezes, sem dinheiro as bailarinas não largam a dança, de alguma forma sabem que existe uma luz dentro delas que não apaga nunca e que, quando estão longe da mais clássica das danças, só faz aumentar e aumentar até incomodar, cegar. O mundo só se acalma na dança.

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