Havia chovido a tarde toda.
Depois das nove horas diárias de ofício, sendo uma reservada para engolir a
quentinha que compravam da pensão da esquina, se encontraram em um bar metido a
pizzaria. As mesas na calçada, as cadeiras dobráveis de madeira e o papel que
disfarçava a higiene duvidosa abaixo de seus cotovelos apoiados entregavam a
origem boêmia da atual pizzaria com restritas quinze opções de sabores no
cardápio.
- Vai querer o que? - Perguntou
ela.
- A aniversariante é você, pode
escolher! - Sorriu forçando cortesia.
- Não quero esse pepino de
presente, não! Você é sempre todo complicado pra escolher uma simples pizza!
Pra mim tanto faz.
- Pra mim também, menos frango
com catupiry.
- Isso não ajuda muito. - Ela
retrucou
Evitando se estender para uma inútil
discussão, como era habitual entre eles, ele sugeriu calabresa. Ela acatou.
Eram seis horas da tarde, mas já aparentava noite alta, com poucas pessoas na
rua e a escuridão característica dos dias nublados.
- Tomara que não volte a chover
forte! Essa marquise é estreita!
Sem responder, ela buscou o
garçom mexendo apenas os olhos. Impacientava-se com conversas que não exigiam
contrapontos, julgava-as desnecessárias. Enquanto isso, o garçom no interior do
bar ocupava-se com alguma atividade no balcão, e mesmo sendo os únicos
clientes, não os dava qualquer atenção desde que haviam sentado.
- Porque você não chama o garçom?
– Ela perguntou.
Ele percebia o machismo nela nos
pequenos detalhes, mesmo sabendo que os anos de estudos feministas dela apontavam
o oposto. Não tocou no assunto, mas chamou o garçom com um ruído entre assovio
e grito. O garçom se aproximou a passos lentos, com um pano de prato sujo
pendurado no ombro e a expressão do tédio estampada no rosto, na postura e na
voz.
- Pois não?
- Uma pizza de calabresa média e
uma Brahma, por favor?
Depois de quinze anos de casados,
ainda não entendia porque ele insistia na Brahma, cerveja aguada que se bebe
quando jovem. Aos quarenta e dois, já deveria ter apurado esse paladar, ela
pensava. Apesar de nada dizer, a expressão facial dela entregava esses
pensamentos. Ele percebeu.
- Conseguiu trocar o despertador?
– Ele tentou se esquivar.
- Quase! Fui à loja na hora do
almoço, mas a fila estava imensa! Desisti!
- Pena que veio enguiçado! Mas
você gostou, né?
- Gostei, sim! Não se preocupe
com isso.
O emprego dela não era o dos
sonhos, mas acreditava que agora era tarde demais para buscar uma mudança e
correr o risco de ficar desempregada por um tempo. Ela pagava a maior parte das
contas da casa.
- Hoje aconteceu uma coisa
incrível no meu dia, amor! Sabe aquele comercial que dei a ideia? Do tênis?
Ficou pronto! Saiu da edição hoje e vão passar em horário nobre! Nunca passaram
uma propaganda minha em horário nobre. – Ele dizia com os olhos sorrindo.
- Que legal, meu bem! Parabéns!
- Lembra quando pensei naquela
ideia? Você estava!
- Mais ou menos. – Ela não fazia
ideia.
Enquanto ele narrava o momento da
inspiração dele, ela fingia interesse enquanto reparava no garçom. Ele com
aquele ar tedioso e a barriga apontando no avental branco surrado tinha ganhado
um animo inesperado e se movimentava de uma forma que não condizia com sua
aparente falta de energia. Sacudia, sem alterar a expressão do olhar e com a
cabeça baixa, um poste daqueles que serve apenas pra sustentar uma placa de
transito. Ela se perguntava que diabos ele estava fazendo. Não podia olhar por
muito tempo, porque ele falava alguma coisa importante. Foi quando direcionou o
olhar pra cima do poste e viu os pombos voando. Ele impedia os pombos de ficarem
no poste por alguma razão.
- Legal essa ideia mesmo! Você
está crescendo na sua profissão, isso é ótimo!
Ele continuou falando qualquer
coisa. Ela pensava nos pombos. Pensava nos motivos daquele homem expulsar as
aves dali. Talvez odiasse pombos, ou não queria que fizessem coco na calçada da
frente do bar. Será que eram ordens do dono do estabelecimento? Ele não tinha
mais o que fazer? Não parecia sentir prazer naquilo. Ela sentiu que, de alguma
forma, sempre tem alguém tentando tirar os outros de onde desejam estar. Mesmo
que não seja vontade que incendeia, tem algum motivo que faz com que os outros
te sacudam, te desviem dos seus próprios desejos. E quando você vê, já está
distante de onde gostaria que estivesse, como os pombos que iam pra banca de
jornal no outro lado da rua. Nunca havia sentido empatia por pombos na vida.
- Você tá vendo essa situação que
engraçada? Ele disse.
- O que?
- Esse figura balançando o poste.
Porque tá fazendo isso? - Ele fazia graça.
- É mesmo! Acho que tá expulsando
os pombos.
- Não tinha notado! Pensei que
estava só se divertindo. – Ele ria sozinho.
O garçom reparou que olhavam pra
ele. Perguntou se queriam mais alguma coisa. Recusaram. Ele entrou e sentou-se
numa mesa de frente pra televisão que gritava a novela.
- Luiz chamou a gente pra almoçar
na casa dele no sábado. Vamos?
- De novo? Não aguento mais ir na
casa dele, ficamos presos naquele apartamento quente o dia todo bebendo sem
parar. – Ela procurava qualquer desculpa pra evitar o cunhado.
- Você que sabe. Mas ficar o
sábado em casa também é um saco, né. Você podia sugerir alguma coisa.
- Vou pensar!
Depois de minutos esperando em
silêncio, a pizza chega. O garçom serve as fatias e volta a expulsar os pombos
do poste. Nessa hora, ela notou que os pombos tinham voltado ao poste. Era a notável
insistência de quem sabe onde quer estar. Perguntou a si mesma se tinha
insistido em alguma ideia sua ao longo da sua vida. Não conseguiu pensar em
nenhuma. Todas iam e vinham numa maré de pensamentos, quase nenhuma fixou.
Assim, foi fazendo o que era necessário em cada momento da vida, sem se
perguntar o lugar que queria ocupar no mundo.
Ele olhou pra ela e desviou o
olhar pro garçom, como quem aponta com os olhos, e deu uma risadinha enquanto
mastigava a pizza. Ela sorriu sem mostrar os dentes. Os pombos estavam
novamente na banca de jornal do outro lado da rua.
- Lembra dos nossos vinte anos,
Pedro? Você era lindo!
- E você continua! – Ele queria
fazer sexo naquela noite. Já fazia duas semanas!
Ela sorriu com sinceridade.
Terminaram a pizza, pagaram a conta e quando estavam indo embora, ela notou que
os pombos ainda estavam na banca de jornal do outro lado da rua, mesmo tendo
passado bastante tempo desde que levaram a ultima sacudida do poste. Resignou-se,
pensando na notável insistência daqueles que tiram os outros de onde desejam
estar.
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