segunda-feira, 22 de setembro de 2014

A qualidade do cipó

Foi quando seus pais foram presos em Pernambuco que teve que vir fugido pro Rio de Janeiro. Naquela época, quem era contra o governo era preso, espancado, torturado. Teve que largar tudo e tentar a sorte por outras bandas, bem longe. Conseguiu serviço, foi vivendo como podia até seus pais serem soltos, dois anos depois. Aprendeu o seu lugar no mundo, a submissão, o calar-se, o não calar-se e todas as consequências. Aprendeu com a família a revolução, e sozinho, a revolta.
Ganhou um terreno do partido do qual o pai era filiado. Um lugar no meio da cidade, mas rodeado de mata. Disseram pra ele que era posse. Herdou. Conheceu uma moça, conheceu outra, teve filhos, constituiu família. Naquele terreno abrigou filhos, sobrinhos, netos, cunhada. Houve quem se aproximasse demais, vizinhos tascando pedacinhos da terra. Mas brigar por causa de terra pra quê? Deixou que plantassem o que quisessem por ali, não havia problema. Até o momento em que percebeu a importância de colocar uma cerca.
- Daqui pra cá é meu, dali pra lá é seu. – Falou para os vizinhos, pensando o quanto incomodava esse negócio de ter que botar cerca.
No mato, cultivava junto com banana, abóbora, aipim, toda a sua vida e suas ideias. Cultivava com o carinho abrutalhado dos que não recebem muito carinho da vida. Ali naquelas bandas sem asfalto, sem coleta de lixo, sem esgoto, com pouquíssimas casas, só queria uma vida em paz, descansada, esquecendo os dias de fuga. Fugindo, encontrou-se. Hoje, depois de tudo que passara, sentia-se rico. Aconteceu que com o tempo foi tudo mudando, teve gente demais chegando, cercando, jogando esgoto no rio onde costumava pescar. Certo dia pensava nisso enquanto descansava depois do almoço, até que a filha, interrompendo-o, anunciou:
- Ô pai, faz uma semana já! O lixo tá lotado!
- Eu sei, minha filha, to indo. – Ele respondeu, mas na verdade havia perdido a noção do tempo.
Tinha que levar o saco de lixo no asfalto, onde passava a coleta. Levava-o sempre duas vezes na semana, porém, dessa vez, a semana estava acabando e ainda não cumprira sua tarefa. Pensou que devia ser coisa da velhice. Carregava consigo a certeza absoluta de que a coleta de lixo e o asfalto acabariam com aquele lugar e, por isso, defendia que ficasse como estava, sem estrutura. Nesse dia, levando o saco de lixo nas costas, passou pela margem do rio, viu aqueles meninos se banhando, às gargalhadas, e sentiu pena. Gostaria que pudessem sentir a água limpa e fresca no corpo, como antigamente. Não reconheceu um rosto que pudesse cumprimentar, era gente nova. Passou olhando de cabeça baixa. Um dos meninos percebeu, mas desviou o olhar. Deixou o lixo no asfalto, e no caminho de volta os meninos ainda estavam ali. Pensou o quanto era mal educada e sem respeito essa nova geração de gente da cidade.
- Vieram junto com o esgoto. – sussurrou baixinho, repensando a pena que sentira no caminho de ida.
Certa manhã, soube por um dos vizinhos que corriam o risco de serem expulsos daquelas terras. Iam levar gente pra lá, fazer condomínio, apartamento, shopping, pracinha. Sentiu o medo no ar, nas águas, na mata, nas ruas, nos rostos. Não demorou e a prefeitura veio bater em sua porta pedindo pra entrar. Ele ficou tonto quando soube, a pressão subiu, teve medo de morrer de tanta emoção misturada que transbordava.
- Boa tarde, seu César.
- Boa.
- Somos fiscais da prefeitura, gostaríamos de saber se o senhor autoriza a gente a avaliar o terreno do senhor. O senhor deve estar sabendo do projeto de melhorias da região. A associação de moradores permitiu a nossa entrada.
Engolindo em seco, seu César lembrava os outros abusos que passara na vida. E pensou que na idade dele, as consequências não importavam tanto quanto antes. Teve vontade de gritar, bater, chorar.
- E como cês vão avaliar o terreno? – perguntou enquanto analisava a calça cargo e o colete verde cheio de bolsos que vestiam. Teve a impressão de que estavam fantasiados.
- Só precisamos capinar uma parte e fazer algumas medições, vamos deixar até mais bonito!
Não conseguiu engolir, nem em seco, a ousadia de pensarem conseguir deixar o terreno mais bonito. Aquele terreno era lindo, era dele, era ele. E se era mato, é porque ele era mato. Ele amava o mato, e insistia em dizer pra todo mundo que não era preguiça de trabalhar a terra, mas porque o mato era lindo mesmo. Lembrou-se de que o seu vizinho, quando para ali se mudou, disse-lhe que o cipó era mato sem qualidade e que ele deveria arrancá-lo, pois agarrava no pé. Ele sabia que aquilo estava errado, que o cipó deixava a terra úmida, protegia as raízes das plantas e as minhocas. Ele conhecia a importância do cipó para as minhocas e das minhocas pra terra. Ele sabia de tudo isso, mas não falou, reduziu-se a olhar para o vizinho com aquele olhar desconfiado das pessoas do mato. Retomou a realidade, olhou naqueles olhos de fiscais de prefeitura, quis falar sobre os cipós. Lembrou-se do contexto, quis falar, quis calar-se. E falou:
- Aqui não vai tirar uma coisa de capim. Do rio pra cá o senhor não vai mexer um nada. O senhor é um laranja, mandado pelo seu prefeito e o seu prefeito é um canalha, pode dizer que eu mandei dizer isso a ele. Aqui não vai entrar, não. O pobre, tá morrendo de fome, tá desempregado e se troca até por uma dentadura pra dar um voto a um safado desse. E eu não sou desse, minha qualidade não é essa. Mas num sou mermo. Porque eu passei fome pra caramba, muita coisa mermo, tá? Comi o lado ruim da maçã estragada, tá? Mas não precisei panhar dinheiro com político nenhum pra nada. Meu pai também nunca foi disso, minha mãe também, essa aí então nem se fala. O senhor pode sair daqui que dessa cerca o senhor não passa.
Os fiscais foram embora. Seu César sentou-se na varanda tentando controlar a pressão com a respiração. Pensou que não devia ter falado daquele jeito. Teve medo. Depois pensou que devia ter falado ainda mais bravo. Teve orgulho. Pensou que era um homem revoltado e gostou da ideia.

- Eu sou mais de brigar pra ficar dentro desse mato aqui igual um bicho mermo, não quero nem saber de nada. – Falou em voz alta, pro mato em volta, pras galinhas e pros lagartos do quintal.

Um comentário:

  1. Lindo demais! Encheu meus olhinhos de lágrimas, lágrimas de tristeza dessa infelicidade que tanto acontece...na rua, na chuva, na fazenda; ou numa casinha no sapê..rs

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