quarta-feira, 4 de junho de 2014

Nossa cultura animal

Existem várias definições de cultura, formuladas por pensadores de diferentes épocas. Eu não sei nenhuma minuciosamente, mas já escutei e li sobre algumas. Sei também o que é cultura pelo senso comum. Aquele conjunto de hábitos, rituais, a moral e o pensamento que rege determinada população humana e que a faz ser diferente das demais. Cultura é, portanto, uma exclusividade humana, e não cai bem discordar desse ponto.
Sei disso porque já discordei, sem nenhum embasamento, confesso. Mas perguntei pra diferentes pessoas, professores, alunos, mães e avós, se acreditavam que existia cultura em outros seres vivos. O consenso era que não. Cultura é humano. Porém, o que me faz pensar que essa afirmação pode não ser inteiramente verdadeira é que somos seres humanos, e com isso, carregamos nossas limitações em interpretar o mundo à nossa maneira. Será, que humanos que somos, conseguiríamos identificar a cultura que existe em outras espécies de seres vivos? Poderíamos, como já acontece, encontrar alguns traços de cultura em primatas (chimpanzés, bonobos, macacos-prego), mas porque conseguimos identificar a nossa cultura em alguns dos seus comportamentos. Porém, a nossa forma de ver o mundo e a nossa cultura não é a única que existe sobre esse planeta. Talvez, outras formas de ver o mundo criem diferentes culturas, as quais, com o nosso olhar limitadamente humano, não conseguimos identificar de forma alguma. Como poderíamos saber se o comportamento estruturado de um formigueiro é meramente instintivo e não cultural? Ou ainda, para fugir dos animais sociais, se a aranha viúva-negra se alimenta do parceiro sexual após a cópula não por instinto, mas por alguma forma de transmissão? E os coalas que, ainda bebês, aprendem com as mães a se alimentar das fezes delas para adquirirem a enzima que lhes permitirão se alimentar de brotos, e unicamente de brotos, para o resto de suas vidas? Uma das características da cultura (como nós a compreendemos) não é, afinal, a transmissão de costumes geração para geração? Isso só pra pensar nos animais. E as plantas que se comunicam unindo suas raízes e lançando compostos voláteis no ar para os vizinhos a perceberem? E a interação inseto-planta? Tudo mecânico, guiado pela cega evolução?
Dentre tantas pessoas que perguntei a respeito dessa minha ideia fixa, que pode ser também ridícula, consegui uma única resposta que achei interessantíssima, de uma professora de antropologia. Ela defendeu a ideia de que, sim, podemos não conceber as diferentes formas de cultura passíveis de existência na natureza, mas isso é um reflexo de algo muito mais remoto presente, sobretudo na cultura humana ocidental, que é a mania indomável de separar natureza e cultura. Se tivéssemos, portanto, outra forma de enxergar a vida poderíamos conceber que tudo faz parte de um mesmo pacote, onde não existe a diferença instinto e cultura, o que é “natural” e o que é “aprendizado”. Enquanto uns dizem que nada é natural, tudo é construído, eu me atrevo a dizer que tudo é natural, mesmo as construções. Ou, ainda, não é nem natural (instintivo) nem construído (cultural), é uma terceira palavra que engloba as duas de uma só vez e que pode, enfim, calar essa dicotomia infinita.

Talvez mexa muito com a nossa autoestima pensar que não somos animais especiais, super-animais, animais encantados. Queremos nos gabar de nossa sociabilidade, nossa interação e linguagem e ousamos dizer que somos os únicos seres vivos com “alma”. Será que se igualarmos os outros seres vivos ao patamar que construímos pra nós mesmos estaremos nos submetendo? Ou simplesmente aceitando a vida como ela é? Afinal, não derivamos todos de um ancestral comum? Fico pensando que se aparecessem extraterrestres totalmente diferentes de nós, mas que decidissem nos estudar, se eles diriam que as festas, os jantares em família de domingo, assistir televisão e construir hidrelétricas não seriam simples instintos, conhecidamente mecanizados, os quais a humanidade segue cegamente, só porque eles teriam uma visão “extraterresterizada” da vida e não compreenderiam a nossa forma de ver o mundo, que se reflete na nossa cultura.

segunda-feira, 2 de junho de 2014

Embalo

Aquele amor embalado ao som de xote, da voz do nosso amigo, daquele gingado que só fazia parte da gente mesmo. O amor que se fazia no meio da lapa, com cheiro de cerveja, fumaça e lágrimas. Da inspiração que vem de longe. Da solidão que se sentia de madrugada, sem estar por perto. E a sensação de confusão, e a falta de inspiração quando não dá mais pra jogar pra fora tudo o que se passa. As palavras já se esforçam pra sair e a chama se apaga. Tudo saiu.

Liquefação

O amor talvez não precise ser duro, sólido, recheado de cristais pontiagudos. O sólido cria rachaduras que se quebram com o tempo. Ao enrijecer, a parte boa entremeia-se na ruim e tudo se torna um só corpo, sem lacunas. Nada tão inflexível pode durar muito. O amor não por isso precisa se tornar gás. Feito ar, pode tornar-se invisível e vai e vem tão depressa como uma respiração em nossos pulmões. Não se pode volatilizar sentimentos, as relações não precisam ser tão areadas só para evitar que endureçam. É um tanto injusto dispensar sensações boas por medo das ruins, deixar que tudo se evapore de uma vez sem que se possa discriminar o que está vazando.  Isso é negar o amor. Sem precisar de defesas, sem querer ser radical, porque não liquidificar nossas relações? A fluidez liquida permite contato e interação de todas as partes, boas e ruins. O líquido se modela ao ambiente, é capaz de mudar sua forma para completar por inteiro cada espaço vazio. Assim deveriam ser as relações, fluidas, possíveis de completar nossos pequenos espaços, onde não conseguimos sentir o gás preencher e onde não há sólido que adentre. Com menos cobranças e, sobretudo sem leviandade, podemos liquefazer nossas emoções, e assim completar uns aos outros, mutuamente, livremente. Como fluido, vamos escorrendo sem freio por cada porta aberta, desviando de obstáculos até que tudo se inunde. Abrindo nossas portas, permitimos um banho das coisas boas que os outros podem nos oferecer. Não vai doer, não há pontas rígidas, somente extremidades curvas de líquido suave acariciando cada espaço pelo qual corre. Abra-se para ser preenchido pelo fluido dos outros, fluidifique-se para preencher os espaços vazios que encontrar. Liquefaça-se.

domingo, 1 de junho de 2014

Bicho de beringela

Lembro da primeira vez que abri uma beringela e me deparei com aqueles pontinhos marrons. Pensei que estava estragada, tinha passado do ponto. Como boa filha, gritei a minha mãe, ela saberia o que dizer, e assim fui apresentada para o bicho da beringela. Cortei com a ponta da faca os inconvenientes pontinhos e pronto, como se nunca estivessem estado ali. Depois desse episódio, e até hoje, vira e mexe encontro com esse bicho. Mas, afinal, que bicho é esse?
Como se não bastasse a presença insistente, nunca tenho certeza se aqueles pontinhos marrons são os bichos em si ou algum tipo de resquício que eles deixam. O mistério ainda se estende pra localização dos tais pontinhos, sempre parecem estar num mesmo sítio do vegetal. Como será que esses bichos se organizam? Será que se mexem? Porque ninguém dá a mínima pra eles? O bicho da goiaba deve se gabar da sua popularidade e zombar do bicho da beringela. O pobre coitado não é nem enojado, nem temido, apenas arrancado com a faca.
Ignorando se o bichinho faz mal ou bem pra nossa saúde ou se é simplesmente indiferente à ela, algumas pessoas preferem deixar a beringela de lado e substituir o vegetal pela segurança da abobrinha. Talvez ele seja tão essencial pra beringela que devemos aceitá-lo se quisermos saborear o seu delicioso roxeado. Pra mim, o bicho da beringela faz parte daquelas coisas invisíveis e inconvenientes, que você sabe que está ali, mas que ao mesmo tempo não vê com nitidez, e ignora tanto o assunto que é melhor não comentar, deixar pra lá. Além de invisível e inconveniente, também está no grupo das coisas constantes, como uma dor de cabeça que não passa por um dia inteiro. Toda hora reaparece e faz você enfrentar mais uma vez as dúvidas daquela existência. Mas nós insistimos em ignorá-lo. O bicho da beringela, assim como as coisas invisíveis, inconvenientes e constantes que nos aparecem diariamente, tem algo pra nos dizer. O que será?

Três vezes arte

Alguém estava triste na rua, Recuperando-se do dia inteiro sofrido Tentaram distraí-lo de seu sofrimento Enganando-o com as gritaria...